Reserva cognitiva como fator de proteção contra o desenvolvimento de demências

O conceito de reserva cognitiva (RC) surgiu a partir de evidências de que indivíduos com níveis semelhantes de alterações neuropatológicas podem apresentar diferentes manifestações clínicas de declínio cognitivo. Um dos marcos iniciais nesse campo foi o Nun Study, conduzido pelo neurologista David Snowdon na década de 1980, com um grupo de freiras norte-americanas. Em uma das participantes, observou-se, após o óbito, a presença de alterações cerebrais típicas da doença de Alzheimer; contudo, em vida, essa freira manteve funcionamento cognitivo preservado e não apresentou sintomas clínicos significativos (Snowdon et al., 1996). Tal achado levou à formulação da hipótese de que experiências intelectualmente estimulantes poderiam aumentar a capacidade do cérebro de resistir aos efeitos de doenças neurodegenerativas.
Desde então, diversos estudos têm demonstrado que a reserva cognitiva atua como um mecanismo de resiliência cerebral, permitindo que o indivíduo mantenha o desempenho cognitivo apesar das alterações estruturais associadas ao envelhecimento ou a patologias. Essa capacidade está relacionada à eficiência, flexibilidade e plasticidade das redes neurais, que podem ser otimizadas ou reorganizadas por meio de experiências de vida enriquecedoras (Stern et al., 2020).
A formação e o fortalecimento da reserva cognitiva são processos dinâmicos, influenciados por múltiplos fatores ao longo do ciclo vital. Um dos principais determinantes é o nível educacional, uma vez que pessoas com maior tempo de escolaridade tendem a apresentar melhor desempenho cognitivo e menor risco de demência (Stern et al., 2019). O bilinguismo também tem sido associado à maior eficiência das redes cognitivas e ao atraso no surgimento de sintomas de demência, uma vez que o uso constante de dois ou mais idiomas requer controle atencional e flexibilidade cognitiva (Bialystok et al., 2022).
O tipo de ocupação profissional constitui outro fator relevante: profissões que demandam raciocínio complexo, resolução de problemas e tomada de decisões promovem maior engajamento cognitivo e contribuem para o desenvolvimento de estratégias compensatórias (Opdebeeck, Martyr & Clare, 2016). Além disso, atividades de lazer intelectualmente estimulantes, como leitura, escrita, jogos de tabuleiro, práticas artísticas e programas de estimulação cognitiva, favorecem a criação de novas conexões sinápticas e a manutenção das funções cognitivas, como memória, atenção e raciocínio lógico (Brandebusque et al., 2020).
O estilo de vida também exerce papel importante na preservação da saúde cognitiva. A prática regular de atividade física, o sono adequado, a alimentação equilibrada e o controle de fatores de risco cardiovasculares, como hipertensão e diabetes, estão entre as estratégias mais eficazes para reduzir o risco de declínio cognitivo e demência (Livingston et al., 2020). Essas ações, aliadas ao engajamento social e ao acesso a ambientes estimulantes, possibilitam um estilo de vida que promove longevidade e qualidade de vida.
Entretanto, o desenvolvimento da reserva cognitiva não depende exclusivamente de escolhas individuais, sendo importante considerar os fatores socioeconômicos e contextuais, que exercem influência significativa sobre as oportunidades de acesso à educação, ao lazer e aos serviços de saúde. Desigualdades sociais e educacionais podem limitar o potencial de formação da reserva cognitiva, reforçando a necessidade de políticas públicas voltadas à promoção da equidade ao longo do curso de vida (WHO, 2021).
Embora a construção da reserva cognitiva se inicie nas primeiras décadas da vida, ela pode ser fortalecida mesmo em idades avançadas. Intervenções baseadas em estimulação cognitiva, aprendizado de novas habilidades e engajamento social demonstram efeitos positivos sobre a função cognitiva e o bem-estar emocional de pessoas idosas (Lojo-Seoane, Facal & Juncos-Rabadán, 2023). Assim, nunca é tarde para investir na saúde cognitiva: a plasticidade neural e a capacidade de aprendizagem permanecem ativas ao longo da vida, permitindo a criação de novas conexões e o fortalecimento das já existentes.
Referências:
APOLINÁRIO, D.; VERNAGLIA, I. F. G. Estilo de vida ativo e cognição na velhice. In: FREITAS, E. V.; PY, L. (orgs.). Tratado de Geriatria e Gerontologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016. p. 2267–2274.
BIALYSTOK, E.; POARCH, G. J.; LUO, L.; CRAIK, F. I. M. Effects of bilingualism and aging on executive function and working memory. Psychological Aging, v. 37, n. 4, p. 543–556, 2022.
BRANDEBUSQUE, J. C.; CIPOLLI, G. C.; ALONSO, V.; DEFANTI, F. M. G.; CACHIONI, M. Reserva cognitiva e os diferentes perfis de ganho cognitivo em idosos: uma scoping review. Psico, v. 51, n. 4, e33842, 2020.
LIVINGSTON, G. et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2020 report of the Lancet Commission. The Lancet, v. 396, n. 10248, p. 413–446, 2020.
LOJO-SEOANE, C.; FACAL, D.; JUNCOS-RABADÁN, O. Cognitive reserve and healthy aging: current perspectives and future directions. Frontiers in Aging Neuroscience, v. 15, e1178645, 2023.
OPDEBEECK, C.; MARTYR, A.; CLARE, L. Cognitive reserve and cognitive function in healthy older people: a meta-analysis. Neuropsychology, Development, and Cognition, v. 23, n. 1, p. 40–58, 2016.
SNOWDON, D. A.; KEMPER, S. J.; MORTIMER, J. A.; GREINER, L. H.; WEKSTEIN, D. R.; MARKESBERY, W. R. Linguistic ability in early life and cognitive function and Alzheimer’s disease in late life: findings from the Nun Study. JAMA, v. 275, n. 7, p. 528–532, 1996.
STERN, Y.; BARNES, C. A.; GRADY, C.; JONES, R. N.; RAZ, N. Brain reserve, cognitive reserve, compensation, and maintenance: operationalization, validity, and mechanisms of cognitive resilience. Neurobiology of Aging, v. 83, p. 124–129, 2019.
STERN, Y. et al. The concept of cognitive reserve: a catalyst for research. Journal of the International Neuropsychological Society, v. 26, n. 6, p. 625–638, 2020.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Global status report on the public health response to dementia 2021. Geneva: WHO, 2021.
Assinam esse texto:
Profª Msc. Gabriela dos Santos – Docente do curso de Medicina da Universidade Santo Amaro (UNISA). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Gerontologia pela Universidade de São Paulo (USP), Graduada em Gerontologia pela USP, com Extensão pela Universidad Estatal Del Valle de Toluca. É pesquisadora no Grupo de Estudos em Treino Cognitivo da USP e atua com estimulação cognitiva para pessoas idosas.
Profa. Dra. Thais Bento Lima da Silva – Gerontóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra e Doutora em Ciências com ênfase em Neurologia Cognitiva e do Comportamento, pela Faculdade de Medicina da USP. Docente do curso de Bacharelado e de Pós-Graduação em Gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH-USP), pesquisadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e vice-diretora científica da Associação Brasileira de Gerontologia (ABG). Membro da diretoria da Associação Brasileira de Alzheimer- Regional São Paulo. É parceira científica do Método Supera. Coordenadora do Grupo de Estudos em Treino Cognitivo da Universidade de São Paulo.
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