A partir do dia primeiro de janeiro de 2022, caso não haja uma mobilização significativa e necessária contra isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecerá a velhice como doença, com a nova Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11).
Esta decisão, a qual se deu em pleno contexto do enfrentamento à COVID-19, escancara que o idadismo está presente, inclusive, no meio científico – não sendo, portanto, restrito a leigos – já que mais de 200 cientistas concordaram com tal classificação.
O idadismo, termo traduzido do inglês “ageism” e utilizado por Palmore (2004) como sendo “o forte preconceito e discriminação contra pessoas idosas”, caracteriza o jovem como um ser superior ao velho, tornando este descartável. Isto pôde ser evidenciado no início do período de pandemia, com a difusão de piadas e publicações preconceituosas em redes sociais – os famosos “memes” – que satirizavam o fato de idosos “furarem” a quarentena. Assim, era destacada a necessidade de que eles fossem barrados e repreendidos, como fazemos com as crianças quando estas apresentam algum comportamento “birrento”.
Esta é a ideia presente no “meme” da “cata véio”, por exemplo, um serviço idealizado para a captura de velhos teimosos que recebeu o apoio virtual de muitos.
As piadas sobre o assunto, as quais parecem inofensivas, desconsideram o fato de que alguns idosos saíram de casa, quando lhes foi recomendado o isolamento social, porque eles não possuíam alternativas, e não por serem teimosos ou não entenderem a importância de que se ficasse em casa, principalmente, naquele período.
Além disso, enfatizam a infantilização do idoso, que consiste no estereótipo de que, quando velhos, voltamos a ser crianças (o que não é verdade, porque a maioria dos idosos é independente e saudável; e, além disso, devemos considerar que eles possuem toda uma trajetória de vida que precisa ser respeitada).
No entanto, para além das piadas, o idadismo também pôde ser notado na tomada de decisão em hospitais e ambulatórios frente à escassez de ventiladores, ocasião em que muitos velhos deixaram de receber o equipamento em detrimento de pessoas mais jovens. Afinal, eles já estavam “fadados à morte”, segundo a opinião médica, sendo menos merecedores do que alguém que tivesse “toda uma vida pela frente”. Agora, com o código MG2A atribuído à “velhice sem presença de psicose” no CID-11, vemos a velhice ser classificada como uma doença, fato que pode contribuir ainda mais para o descaso com o velho.
Embora no CID-10 a senilidade (o processo de envelhecimento com a presença de doenças) já tenha sido considerada uma doença, no CID-11 a senescência (o processo de envelhecimento saudável) também passará a fazer parte da mesma classificação. Mas o que isto implicará na prática clínica?
Tratar a velhice como uma referência diagnóstica poderá comprometer, por exemplo, a realização de uma investigação clínica mais detalhada de uma doença, quando esta apresentar sinais e sintomas inespecíficos, que são bastante comuns na velhice. Assim, se o paciente tiver 60 anos ou mais, o médico poderá apenas entender que se trata de um problema de “velhice”. Além disso, seguindo esta linha de raciocínio, dados utilizados para o embasamento da criação de políticas públicas também poderão ser comprometidos, porque eles não refletirão as causas de óbitos de maneira fidedigna.
Sabemos, por exemplo, que doenças cardiovasculares, uma das mais prevalentes causas de mortalidade no mundo, podem ser evitadas com um controle de seus fatores de risco, como a presença de hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, diabetes e obesidade. Mas, no caso da velhice, quais seriam seus fatores de risco? Os anos vividos? Deveríamos não chegar a esta fase do ciclo de vida?
A velhice é uma conquista da humanidade. A própria OMS reconheceu isto ao publicar o “Relatório Mundial de envelhecimento saudável”, em 2015, trazendo o conceito de autonomia e saúde, destacando que a velhice seria o resultado das influências biopsicossociais em nosso curso de vida, sendo, portanto, heterogênea e individualizada. Mas qual seria o motivo desse retrocesso de pensamento presente no CID-11?
A OMS parece ter se deixado convencer por pesquisadores como David A. Sinclair, um dos grandes geneticistas da Universidade de Harvard e autor do livro “Tempo de vida: por que envelhecemos – e por que não precisamos”.
Ele acredita que a cura da velhice pode ser realmente alcançada, principalmente se uma maior quantidade de verba for direcionada para a pesquisa “anti-aging” ou “antienvelhecimento”, a ciência do prolongamento da vida. Essa verba pode ser conseguida caso a velhice seja considerada uma doença.
Logo, a ideia de “elixir da juventude”, combatida com o surgimento da Gerontologia – o ramo da ciência que estuda o processo de envelhecimento humano – parece estar em voga novamente.
Vale ressaltar que outras condições também foram classificadas, de modo bastante questionável, como doenças, a exemplo da transexualidade e da pré-obesidade.
É necessário que seja defendida a ideia de que, além de ganhar anos de vida, precisamos acrescentar vida aos anos. Passar a nossa existência buscando formas de não envelhecer apenas far-nos-á não “viver” enquanto os anos passam, de modo que deixaremos de aproveitar a velhice como uma fase do ciclo vital, por vê-la como um ônus. Além disso, é importante destacar que não existe um “velho típico”: a única coisa que há em comum entre os idosos, ao menos de uma mesma nação, é a sua idade cronológica (60+ em países em desenvolvimento e 65+ em países desenvolvidos).
Embora todos passemos por alterações fisiológicas naturais no organismo conforme envelhecemos, elas não nos tornam doentes e, ainda, dependem do nosso estilo de vida e de fatores socioculturais. Logo, elas não são intrínsecas à nossa idade e, por conseguinte, não possuem um marcador cronológico, o que implica na existência de idosos longevos com uma saúde que pode ser equiparada a de um jovem adulto.
A velhice não é uma doença. É importante que esta informação seja disseminada, por meio de ações educativas e de políticas públicas. E que a longevidade não passe a ser temida pelos velhos e pela sociedade, mas sim, cada vez mais comemorada por toda a sociedade, como uma conquista social e uma importante fase da vida para a realização de sonhos, descobertas de novos significados e de projetos de vida.
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Manuela Lina da Silva
Gerontóloga pela Universidade de São Paulo (USP), com realização de intercâmbio de Graduação pelo Programa de Mobilidade Acadêmica em Gerontologia da Escola Superior de Saúde (ESSa) do Instituto Politécnico de Bragança (IPB) – Portugal. Exerceu estágio-voluntário na Santa Casa de Misericórdia de Bragança – Portugal e foi bolsista no Projeto Bairro Amigo do Idoso – Brás/Mooca (SP). É membro-auxiliar de pesquisa do Grupo Assistencial Multidisciplinar do Idoso Ambulatorial (GAMIA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP).
Profa. Dra. Thais Bento Lima-Silva
Docente do curso de Graduação em Gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Coordenadora do curso de pós-graduação em Gerontologia da Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS), pesquisadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretora científica da Associação Brasileira de Gerontologia (ABG). Membro da diretoria da Associação Brasileira de Alzheimer- Regional São Paulo. É assessora científica e consultora do Método Supera.
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